Tecnologia e Inovação

Desmaterialização e obrigações fiscais: o fim à vista do papel?

O difícil momento que atravessamos, para a vida económica e financeira das empresas, deve ser aproveitado para acelerar um processo que estava em curso, a desmaterialização das operações e o fim do papel.

A desmaterialização do suporte das transações internas e externas é uma necessidade cada vez maior, com vista à melhoria da eficiência dos processos administrativos, mas também como necessidade para a produção de informação mais tempestiva, em maior quantidade e de maior qualidade.

A substituição do papel por bases de dados é inevitável e pode trazer ganhos muito relevantes em termos de economia de recursos, quer em termos de elementos físicos consumidos, quer em termos de tempo de ocupação de recursos humanos na recolha, no processamento e conferência da informação.

A substituição do elemento físico, o papel, deve, contudo, assegurar princípios fundamentais da informação, quer para efeitos económicos quer para efeitos fiscais, como sejam:

A confidencialidade: a informação só deverá estar acessível a pessoas autorizadas. No caso da informação económica e financeira da atividade empresarial, incorpora ainda aspetos de concorrência e de segredos de negócio. Por isso, as bases de dados deverão estar disponíveis apenas a utilizadores autorizados e conscientes do dever de confidencialidade, a que o contabilista certificado está obrigado, bem como todos os seus colaboradores.

Por outro lado, na relação com o exterior, nomeadamente para efeitos de cumprimentos de obrigações fiscais ou pedidos de entidades financiadoras, os dados devem ser disponibilizados, após prévia autorização do seu proprietário, mas não devem ser comunicadas os dados não essenciais ao cumprimento declarativo, ou disponibilizadas as informações não essenciais, e muito menos guardadas pelos organismos do Estado. O caso mais paradigmático tem a ver com a exigência de envio, anual, de todos os dados constante no ficheiro SAF-T[1] da contabilidade.

É aceitável o acesso total aos dados, para efeitos de fiscalização, com respeito dos direitos e garantias dos contribuintes previstos da Lei Geral Tributária. Contudo, o envio dos dados não essenciais ao cumprimento declarativo, com os perigos resultantes da concentração de informação, é uma fronteira que não deve ser ultrapassada. Mais grave ainda, é que através deste diploma, as demonstrações financeiras previstas na IES, passam a ser produzidas automaticamente, sem possibilidade de alteração pelo contabilista certificado[2], o que contraria disposições prevista no Código das Sociedades Comerciais e no Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados, bem como da normalização contabilística nacional e internacional.

Para os contabilistas que trabalham em regime de prestação de serviços externos, este tema incorpora ainda outros desafios uma vez que, no respeito dos deveres éticos e deontológicos, a informação que guardam nos seus sistemas, e que são propriedade dos respetivos titulares, não podem ser acessível por terceiros não autorizados e o “hacking” é um problema cada vez mais comum. Acrescem, por isso, preocupações relativas à segurança digital.

A integridade: ao garantir que a informação mantém sua origem e não pode ser alterada, isto é, depois de produzida e devidamente validada, não pode ser modificada.

A este propósito tem havido também avanços da fiscalidade, nomeadamente através das regras previstas para o SVAT[3], que nos parecem exagerar a aplicação deste princípio, quando se prevê a exigência de “controlos aplicacionais que previnam a alteração e/ou eliminação de processamentos já efetuados”. Um erro deve ser corrigível, embora deva permitir a rastreabilidade das operações.

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– A disponibilidade: ao garantir que os dados das organizações precisam estar seguros e disponíveis para serem usados a qualquer momento pelos utilizadores autorizados. Recorda-se, a este propósito, que os dados contabilísticos devem estar disponíveis e acessíveis durante, pelo menos, 10 anos, para efeitos e fiscais. Deve ainda merecer particular atenção o uso de aplicativos acessíveis através do pagamento de uma remuneração periódica (“SAS – Software As a Service”). Onde ficam as bases de dados e como se acedem, após o serviço ter terminado, é um aspeto a cuidar na celebração do contrato de serviços.

A autenticidade: que permite identificar e registar o utilizador que produziu ou modificou a informação.

Para as empresas que já implementaram estes processos desmaterializados, a condição indispensável dos contabilistas obterem as informações para o cumprimento das obrigações declarativas das empresas, em tempos de restrições de circulação física, estão mitigadas, porque dispensam a existência física do papel.

Contudo, para que estes processos avancem sem constrangimentos, é necessário que também as entidades públicas acompanhem e se adaptem a esta nova realidade.

O caso mais paradigmático é o da Autoridade Tributária que, se por um lado gerou uma desmaterialização sem precedentes nos últimos anos no que respeita à recolha de informação do contribuinte, concretizada pela adoção do SAF-T[4], a criação de aplicativos de comunicação declarativa, como a modelo 22, a IES, as declarações mensais de remunerações (DMR), de Inventários, de retenção na fonte, a título de exemplo, por outra lado continua a exigir o suporte físico das transações em papel[5], com o risco, para o contribuinte, de correções fiscais em sede de IRC, de IVA ou de IRS, por insuficiência de prova material. Parece-nos exagerado que seja considerado, para este efeito, que o termo usado na legislação e relativo aos documentos “processadas através de sistemas informáticos”, possa equivaler à exigência da impressão em papel.

Depois do sistema editar e guardar, com todas as salvaguardas previstas nos sistemas certificados pela AT, relativas à integridade e autenticidade dos documentos fiscalmente relevantes, que são posteriormente também comunicados, com regularidade mensal, no caso das faturas, não se percebe porque é que um documento impresso em papel pode ter mais valor de prova que um documento digital (por exemplo em formato pdf). Não nos parece que esta exigência vá ao encontro dos objetivos de evitar a duplicação de uso de documentos para efeitos fiscais, mas com certeza que gera perdas e ineficiências para as todas as empresas cumpridoras. Esta aceitação não deverá ter apenas uma aplicação temporária por Despacho do SEAF[6], mas suportada por uma alteração legal.

Quando se estipula uma nova metodologia de recolha e comunicação de informação, há que ponderar o custo de a produzir e a eficiência que pode trazer aos processos. A informação só deve ser comunicada uma vez. O envio de declarações mensais deveria evitar posteriores declarações anuais. Os ganhos da desmaterialização devem ser para todos os intervenientes e não só a pensar numa das partes. Há que evitar redundâncias e processos declarativos sem relevância.

[1] Decreto-Lei n.º 87/2018, de 31 de outubro

[2] Art. 3.º da Portaria n.º 31/2019, de 24 de janeiro

[3] Portaria n.º 293/2017, de 2 de outubro

[4] “Standard Audit File for Tax purposes”

[5] Processo: nº 3550, despacho do SDG dos Impostos, substituto legal do Diretor-Geral,

em 2012-07-17 (Direito à dedução – Fatura – Impressa em ficheiro com formato PDF e enviada por correio eletrónico ao destinatário)

[6] Por exemplo o Despacho SEAF n.º129/2020_XXII